Na prática, o PL nº 1.087/2025 faz o seguinte: cria uma tributação mínima anual para altas rendas e volta a cobrar imposto sobre dividendos (10% a partir de 2026, acima de R$ 50 mil por mês), mas não mexe um centavo naquilo que já pesa sobre o lucro dentro da empresa — IRPJ (15% + 10% de adicional) e CSLL (9%). Existe um redutor “curinga”, dependente de regulamento, que só entra em cena se a soma das alíquotas efetivas ultrapassar tetos nominais (34%, 40% ou 45%). Isso não é integração entre camadas; é remendo. A companhia continua pagando tudo, e o sócio passa a pagar também.
Tributar dividendos, por si só, não é heresia. O problema é fazer isso sem qualquer contrapartida no nível corporativo, atingindo o mesmo lucro em dois momentos distintos. Países que decidiram tributar a distribuição geralmente calibraram o imposto na pessoa jurídica ou concederam crédito ao acionista, para que o resultado não sofresse bitributação econômica.
A opção adotada pelo Brasil nos afasta do padrão adotado pela OCDE: onde há tributação em dois níveis, há integração. Aqui no Brasil, o PL simplesmente soma alíquotas e confia que um ajuste discricionário resolva o excesso, o que é pouco para quem busca previsibilidade.
Países que cobram imposto sobre dividendos costumam reduzir a alíquota corporativa, conceder crédito imputado ao acionista ou isentar parte da distribuição (participation exemption). A lógica é manter a carga total dentro de um alvo competitivo e impedir que o mesmo lucro seja estrangulado duas vezes. Ao ignorar esse desenho, navegamos na contramão justamente de quem queremos usar como referência.
O diagnóstico é direto: o texto propõe tributar dividendos sem compensação na carga corporativa, afastando o Brasil da lógica adotada por economias que integram as duas camadas. Não há redesenho do IRPJ/CSLL, não há crédito amplo imputado ao acionista, não há redução estrutural da base corporativa. O redutor prometido é posterior, condicionado e insuficiente. Em vez de corrigir a distorção na origem, empurra-se o problema para um eventual decreto que, convenhamos, pode nunca chegar ou chegar pela metade.
Do ponto de vista jurídico, a crítica se sustenta. A capacidade contributiva (art. 145, §1º, da Constituição) e a vedação ao confisco (art. 150, IV) ficam esticadas quando a carga combinada ronda 45% em empresas não financeiras e pode passar de 50% em setores específicos. Legalidade estrita e segurança jurídica (art. 150, I, CF/88; art. 97 do CTN) pedem regras claras e transições objetivas — o que explica a cláusula do “estoque” de lucros até 31/12/2025, mas não legitima bitributação daqui em diante. E, se o IR incide sobre acréscimos patrimoniais (art. 43 do CTN), tributar a geração do lucro e, depois, a sua distribuição sem nenhuma integração fragiliza o conceito e alimenta o argumento de bis in idem econômico.
Sobre o estoque: o parecer isenta os lucros e dividendos aprovados até 31/12/2025 da nova retenção e da tributação mínima. É útil para dar previsibilidade a quem investiu sob outra regra. Porém, não resolve o custo do capital daqui para frente. Pior: condiciona-se a formalidades societárias. Quem não deliberar a tempo perde o benefício. O que deveria ser transição vira corrida cartorial de última hora.
Na economia real, o efeito é previsível. O capital próprio fica mais caro, a dívida segue relativamente barata, e o empresário é empurrado para o endividamento ou para estruturas criativas de planejamento. Em 2025, todo mundo corre para antecipar dividendos e fugir da mordida futura — um comportamento que não cria riqueza, só responde ao estímulo errado. Com uma alíquota efetiva superior à média dos países que integram as camadas, o Brasil fica menos atraente para o capital estrangeiro que compara custo e previsibilidade antes de aportar.
Como corrigir o rumo? Primeiro, sincronizar a entrada do imposto sobre dividendos com uma redução escalonada de IRPJ/CSLL, mantendo a carga total em patamar competitivo. Depois, conceder crédito (integral ou parcial) ao acionista pelo IR já recolhido na pessoa jurídica — integração de verdade, não maquiagem. Também vale revisitar o Juro sobre Capital Próprio e aproximá-lo de um allowance for corporate equity (ACE): permitir que o capital próprio gere uma dedução “notional”, neutralizando o viés pró-endividamento. Soma-se a isso uma transição mais ampla e simples para o estoque de lucros, sem armadilhas formais, e faixas de isenção ou alíquotas reduzidas para micro e pequenas empresas (LC 123/2006) — e, se for o caso, para empresas de médio porte, que, embora não definidas na LC 123, sofrem com custos de compliance desproporcionais.
No fim das contas, tributar dividendos pode fazer sentido. O que não faz é cobrar “cheio sobre cheio” e esperar que um redutor regulatório conserte o que é estrutural. Se a ideia é modernizar o sistema e aproximá-lo de padrões internacionais, o caminho passa por equilíbrio, neutralidade e previsibilidade. Do contrário, seguiremos empilhando tijolos sem argamassa — e reclamando do peso quando o muro começar a rachar.